Entrevista: Rui Bebiano

Rui Bebiano é historiador, professor de História Contemporânea no Departamento de História, Estudos Europeus, Arqueologia e Artes da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (FLUC) e investigador do Centro de Estudos Sociais (CES). É, desde 2011, diretor do Centro de Documentação 25 de Abril.


1. Quais são as suas recordações mais marcantes sobre o regime do Estado Novo?
R: Quando o regime do Estado Novo caiu, eu tinha 21 anos, pelo que tenho muitas recordações do que era o Portugal dessa época. Desde a escola primária até à entrada na Universidade, recolhidas tanto na pequena vila do interior onde nasci como em Coimbra, para onde vim continuar os estudos. Talvez por ter alguma consciência política desde muito cedo, a imagem mais forte é a de um país fechado, de um regime autoritário, da censura, do medo de ter opinião. E também de assistir a uma grande desigualdade social, com pessoas muito ricas, embora poucas, e muitas, a maioria, que eram muito pobres, sendo a classe média, à qual a minha família pertencia, ainda uma minoria, ao contrário do que acontece hoje. Mas recordo-me também, sobretudo a partir dos últimos anos do Estado Novo - o "período marcelista" de 1968-1974 -, de notar alguma abertura, sobretudo através da influência de correntes democráticas e de formas de estar próprias da cultura juvenil dos anos 60. Estas iam introduzindo na sociedade portuguesa, sobretudo nas cidades, algumas alterações. Naturalmente, lembro-me também da Guerra Colonial, iniciada em 1961, que marcava a vida das famílias, em particular a dos rapazes mais jovens, que tinham como horizonte inevitável três anos de serviço militar, com a participação numa guerra que a maioria não compreendia. Tenho ainda a memória da minha própria participação no combate contra o regime, que começou em 1969, dela tendo resultado duas prisões pela polícia e a entrada forçada no serviço militar, onde estava quando se deu o 25 de Abril.
2. Onde se encontrava no dia 25 de Abril de 1974?
R: Como disse, estava no serviço militar, ainda em Coimbra. É curioso que nesse dia, logo de manhã cedo, ainda eu não sabia do movimento militar, seguia fardado pela rua a caminho do meu quartel quando alguns populares vieram ter comigo para saber o que se passava. Na verdade, naquele exato momento eles sabiam mais que eu. Foram eles que me deram a saber da revolução.


3. Que impacto teve esta revolução na sua vida pessoal e familiar?

R: Um impacto enorme. Se não tivesse existido, eu teria provavelmente emigrado por razões políticas, ou então teria ficado preso. Provavelmente também não teria feito o curso universitário, ou tê-lo-ia feito muito mais tarde e noutras condições. Com toda a certeza não teria conhecido muitas pessoas que nos anos 70 e 80 foram muito importantes para a minha vida. Teria outra profissão e hoje seria outra pessoa. Provavelmente ainda com uma vida menos preenchida e com toda a certeza menos livre e menos criativa do que aquela que fui tentando construir em liberdade e dentro do meu país.
4. Como avalia o período que se seguiu à Revolução dos Cravos (como descreve a transição política da ditadura para a democracia, quais são as suas memórias sobre este período, foi um período que o marcou a nível pessoal e/ou familiar)?
R: Para quem, como disse, tinha 21 anos em 1974, a Revolução e as transformações dos anos seguintes foram uma experiência imensa, pois viram Portugal mudar da noite para o dia. É claro que nem tudo foi perfeito, que se cometeram alguns erros, que, como acontece em todas as revoluções, se tomaram algumas iniciativas precipitadas. Mas a vida melhorou para todos - quem o nega, garanto que está a mentir ou então tem más intenções -, acabou a guerra, passou a haver segurança social, melhorias na saúde, ensino mais barato, melhores condições de vida, uma maior igualdade formal para as mulheres, e liberdade para pensar, criticar e propor. E para cada um, na medida das suas possibilidades e do seu esforço, poder seguir o seu próprio caminho. Só quem viveu sem ela, na realidade, pode compreender completamente o que é viver sem ela. O período revolucionário foi também um período muito intenso, no qual tudo mudava 24 horas por dia, sem exagero. Por isso, apesar de terem sido apenas 18 meses, quem viveu a época tem a sensação de ter sido muito mais tempo.

5. Peço-lhe uma reflexão sobre o modo como evoluiu a memória deste período de transição política (ditadura para a democracia) nos últimos anos.

R: Nos últimos anos têm surgido problemas com a memória da transição. Por um lado, isso é natural, pois o tempo passa, e com ele muitas pessoas vão perdendo parte das recordações. Mas há também muita informação errada e parcial. Por exemplo, no ensino público, a revolução de 1974-1975 é apresentada quase sempre como um período de caos e de erros, quando, na realidade, se construiu imenso e se permitiu ao país dar o alto que fez com que já não seja, como era, o país mais atrasado e pobre da Europa. É necessário dar maior atenção à história de Portugal e à memória coletiva dos portugueses desde os anos 50 à atualidade, passando pelos anos da transição democrática.


6. Que avaliação faz da democracia na atualidade?
R: Como dizia o antigo primeiro-ministro britânico Winston Churchill, «a democracia é o pior dos regimes, se tirarmos todos os outros». Isto é, com todos os seus defeitos e dificuldades, não existe regime melhor. É claro que as instituições devem ser aperfeiçoadas, que os partidos por si só não são suficientes, que se devem criar mecanismos de auscultação da vontade popular mais próximos dos cidadãos, que a informação e o conhecimento da realidade através da educação e da cultura devem melhorar, permitindo que existam melhores cidadãos e que, desta maneira, a democracia possa também funcionar melhor.



Entrevista realizada por: Ana Matilde Reis
Coordenação/Tutoria: Professora Ana Sofia Pinto