Natividade Monteiro

Licenciada em História, mestre em Estudos sobre as Mulheres e doutorada em História Contemporânea. Professora de História e de História da Cultura e das Artes do Ensino Secundário, aposentada. Investigadora integrada do Instituto de História Contemporânea, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas - Universidade Nova de Lisboa, membro do projeto Faces de Eva e investigadora colaboradora do Grupo de Investigação de Estudos sobre as Mulheres, Género, Sociedade e Culturas do Centro de Estudos das Migrações e das Relações Interculturais da Universidade Aberta (CEMRI-UAb). Tem participado em congressos nacionais e internacionais, coordenado exposições, ciclos de conferências, encontros e cursos livres e publicado livros e artigos sobre o movimento feminista, o associativismo feminino, educação e cidadania na 1.ª República e organizações patrióticas e humanitárias na 1.ª Guerra Mundial.


1. Quais são as suas recordações mais marcantes sobre o regime do Estado Novo?
R: A pobreza, a repressão, o analfabetismo e o medo institucionalizado. Não se falava de política porque as paredes tinham ouvidos. A autoridade devia ser respeitada; o seu poder era discricionário e exercido de forma violenta. Não havia liberdade nem respeito pelos direitos dos cidadãos. Nada se podia contestar ou criticar. As reuniões, associações e sindicatos que não se enquadrassem na política do regime eram proibidos. A Constituição de 1933 discriminava as mulheres em função da sua natureza, isto é, em função do sexo.

2. Onde se encontrava no dia 25 de Abril de 1974? Quais são as suas memórias sobre este dia?

R: Em Lisboa. Preparava-me para ir para o trabalho e a minha mãe já regressava do seu, com a notícia de que havia uma revolução e que era proibido sair de casa. Pensei que fosse mais uma revolta estudantil reprimida pela polícia, com violência e prisões. Depois do almoço saí com o meu namorado, hoje, meu marido, para vermos como estavam as coisas, mas não nos atrevemos a ir até ao centro dos acontecimentos.
Fomos bem comportados, cumprindo as recomendações. Depois, arrependemo-nos por fazermos o que se esperava de todos nós, os habitantes de Lisboa. Não estar no centro dos acontecimentos, foi, para mim, imperdoável.

3. Que impacto teve esta revolução na sua vida pessoal e/ou familiar?
R: Na vida pessoal não houve alterações.
O mesmo não se poderá dizer no que toca à agitação na vida profissional.
Trabalhava numa multinacional norte-americana, cujo director fugiu, sorrateiramente, sem avisar. A empresa entrou em autogestão, viveu a instabilidade que a revolução provocou no tecido empresarial, adoptou o nome português que tinha antes de ser comprada pela multinacional, e manteve a laboração com êxito até aos finais do século XX. Com uma implantação razoável no mercado nacional, recebeu várias propostas de compra de grandes empresas multinacionais do mesmo ramo, entre elas a antiga dona, mas os trabalhadores fizeram questão de não lha vender. Foi vendida a outra multinacional, com a integração de todos os trabalhadores que ainda lá se mantinham.
Conto isto por ser um bom exemplo dos tempos conturbados que se viveram no mundo do trabalho e do bom-senso das escolhas e sacrifícios dos trabalhadores que não baixaram os braços e defenderam os seus postos de trabalho.
Há que salientar também a confiança das empresas clientes nas capacidades de gestão e de trabalho de quem ali laborava.
Na empresa havia um colega, jovem, muito inteligente, casado e pai de duas meninas, crítico do regime, politicamente activo e que, por vezes colaborava com amigos do Partido Comunista. Foi preso alguns meses antes do 25 de Abril. Os PIDES foram à empresa e vasculharam as gavetas da sua secretária, olhando todos nós com desconfiança e ar desafiador. Aqueles homens odiados e odiosos, sempre de gabardina de cor beje, metiam medo e punham em sentido os mais corajosos.
O 25 de Abril libertou o meu colega e amigo da tortura do sono e de outras igualmente humilhantes e altamente penalizadoras para quem as sofreu. O que ele contou depois e o que li sobre as práticas da polícia política deixaram-me arrepiada de tanta crueldade. Ele nunca mais foi o mesmo homem. Psicológica e fisicamente afectado, a sua vida levou uma grande reviravolta e por pouco não se desfez. Tenho pena de nunca mais saber dele.
Eu decidi mudar de vida e saí para o ensino em 1981. Fiz-me professora de História.
Como em tantas outras famílias, na minha também houve tios e primos, próximos e mais afastados, que regressaram de África, sem nada, os retornados. Todos refizeram a vida, alguns tiveram mais êxito que outros, mas toda a gente se integrou da melhor maneira. Gente trabalhadora e empreendedora que enfrentou os problemas sem dramas visíveis.

4. Como avalia o período que se seguiu à Revolução dos Cravos (como descreve a transição política da ditadura para a democracia, quais são as suas memórias sobre este período, foi um período que a marcou a nível pessoal e/ou familiar- justifique)?
R: Como em todas as revoluções o que mais me marcou foi o radicalismo das facções políticas e militares em presença e os excessos de grupos e de pessoas que agiram em função dos seus interesses, simpatias e ódios. Tudo era permitido porque reinava a ideia de impunidade, um hiato entre dois tempos, o passado e o presente.
Tornou-se hábito ligar o rádio de manhã, mal acordava, para ouvir as notícias alarmantes de atentados que cortavam a água e a electricidade; de buscas do COPCON a casas e a instituições à procura de rivais; da perseguição aos PIDES - esta justificada -; da discriminação dos retornados e do racismo contra os negros que fugiam da guerra e chegavam em número elevado; das emboscadas e assassínios por vingança pessoal; das vigilâncias populares e barreiras nas estradas, levadas a cabo por gente ligada às esquerdas ou simples aventureiros, armados em guardas e polícias.
Também recordo os saneamentos nas empresas e nas universidades; a falta de bens alimentares básicos, como leite e batatas, entre outros géneros, o açambarcamento e a subida dos preços; os confrontos nas fábricas entre patrões, operários e grupos de trauliteiros, pagos pelos primeiros para disciplinar e intimidar os trabalhadores; da expulsão dos patrões das fábricas e empresas e das tentativas frustradas da autogestão dos trabalhadores que muitas vezes pensavam que bastava não ter patrões para serem livres e terem melhores salários; as falências em série, as fugas para o Brasil; a ebulição confusa da Reforma Agrária que pôs o Alentejo a ferro e fogo, com os camponeses, verdadeiros e falsos, mas também agitadores, ocupando terras e casas, destruindo propriedade privada e levando o desespero a muitas famílias, consideradas capitalistas, só porque tinham um bocado de terra que tratavam com carinho. Enfim! Era o radicalismo da revolução no seu esplendor!
A nível político: a instabilidade com os desentendimentos partidários e os governos precários e sem grande capacidade de decisão política; a maioria silenciosa do 28 de Setembro; o ridículo das imagens dos soldados do RALIS no 11 de Março, que não sabiam se deviam disparar ou não contra os helicópteros que sobrevoavam o quartel, pois não percebiam nada do que se estava a passar e de que lado se deveriam posicionar; os constantes comunicados do Conselho da Revolução; as lutas pela afirmação dos partidos políticos; os excessos do radicalismo de esquerda e de direita; o extremar de posições na rivalidade entre os políticos e os militares, apesar do slogan: O povo está com o MFA, etc.
O General Spínola passou de herói respeitado, autor do livro "Portugal e o Futuro", vice-chefe das Forças Armadas e militar conceituado, a vilão conivente com as forças da direita contra-revolucionária. O golpe falhado levou-o ao exílio mas a aura do militar que pretendia o melhor para o país, permaneceu entre os sectores políticos moderados.
A independência apressada das colónias, tão criticada na época como ainda hoje, sobretudo pelos que mais perderam, dividiu os políticos, os militares e a sociedade portuguesa, apesar de a guerra colonial ser a causa principal do 25 de Abril. As consequências foram desastrosas para os militares que ainda lá estavam, para os africanos que começaram outras guerras entre si, e para os portugueses brancos que abandonaram tudo para fugirem à morte. Resta a pergunta: o processo de independência poderia ter sido de outro modo? Sim! Mas havia muita pressa em fechar aquele capítulo da guerra, porque não havia consensos sobre a melhor forma de fazer a descolonização e os movimentos de libertação exerciam muita pressão para tomarem nas suas mãos o destino dos seus países.
O ano de 1975 foi particularmente agitado. As nacionalizações foram o ponto mais alto da revolução em curso. O PREC, hoje tão denegrido, se excluirmos os excessos da mentalização partidária, foi um movimento que envolveu gente de boa vontade que levou às populações rurais mais isoladas a possibilidade de aprenderem a ler e a escrever e de receberem algumas luzes sobre cultura política. O serviço cívico abriu horizontes a muitos jovens que aí se iniciaram na política e perspectivaram um futuro diferente.
Nesse ano ocorreu um acontecimento trágico que muito me marcou. A extrema direita trauliteira apoiava grupos contra-revolucionários, o MDLP e o ELP, que incendiavam e destruíam sedes de partidos de esquerda e atacavam à bomba pessoas e bens, tanto particulares como públicos. Esses grupos terão estado na origem do assassinato do Padre Max e da sua amiga Maria de Lurdes. Foi mais um atentado bombista que fez explodir o carro em que seguiam para uma sessão de esclarecimento numa aldeia próxima de Vila Real de Trás-os-Montes. Nunca se apurou a verdade sobre o atentado nem houve condenações. Apenas se denegriu o nome das vítimas.
Ele tinha sido meu professor, era uma pessoa excepcional, culto e com uma mente aberta, que tinha vivido o Maio de 68 e nos incentivava a defender os valores humanistas, como a liberdade e a igualdade de direitos, bem como nos incutia o desejo de ir além do que se esperava das meninas e raparigas daquela época: crescer, casar, ser boa dona de casa e mãe extremosa. Ele era o amigo divertido que unia um grupo de raparigas e rapazes, a maioria seus alunos e alunas, que conviviam e discutiam temas culturais e políticos proibidos.
Lembro-me das discussões em torno da interpretação dos romances «Barranco de cegos» de Alves Redol e «Uma abelha na chuva» de Carlos de Oliveira e também sobre o teatro do absurdo de Ionesco. Apostado na instrução e esclarecimento político das populações rurais, era candidato pela UDP e isso a direita clerical não lhe perdoou. Senti uma revolta imensa quando soube da sua morte.
Na Universidade, as RGAs constantes, a rivalidade das juventudes dos partidos políticos pela direcção das associações de estudantes, o protagonismo de alguns que indiciavam já carreiras e percursos brilhantes na política e noutras áreas igualmente promissoras.
Muitos se evidenciaram e aproveitaram as oportunidades que surgiram.
Aprendia-se a viver em democracia mas para alguns valia tudo.
Lembro um episódio caricato desses tempos. Um dia, um colega da Faculdade confrontou-me, dizendo: Não sabia que pertencias ao partido tal..., ao mesmo tempo que me mostrava um folheto com uma lista concorrente à Associação de Estudantes da Faculdade de Letras, onde o meu nome se incluía. Olhei e era mesmo o meu nome e a minha cara que ali estavam na lista mas eu não pertencia à juventude do partido respectivo nem ninguém me tinha perguntado se queria fazer parte da referida lista.
Fiquei espantada com tanta desfaçatez mas achei que nem valia a pena pedir explicações a gente que assim agia.
Era este o ambiente universitário nos tempos que se seguiram à Revolução. As lutas partidárias já se sobrepunham a tudo. A contestação de professores e de notas atribuídas era constante. Lembro-me de um colega contestar a nota que o Professor de Cultura Portuguesa, o ilustre José António Saraiva, atribuiu a uma aluna porque, segundo o dito jovem, ela não merecia. A rapariga não dava nas vistas, era discreta e tímida e não falava nas aulas. O Professor respondeu-lhe em sentido contrário e ele saiu da aula, numa atitude muito desrespeitosa.
Valeu a pena a revolução nos programas curriculares dos cursos e as novas ideias e leituras que os professores vindos do exílio nos proporcionaram. Falava-se e estudava-se Epistemologias das Ciências Sociais, História-narrativa e História-ciência, lia-se marxismo-leninismo em abundância, tomava-se contacto com os nomes sonantes e os estudos da Escola dos Annales. Era uma festa de novidades! Era um outro mundo que se abria para nós!
Foram cerca de 1 200 os alunos e alunas que se matricularam no curso de História no ano lectivo 1975-1976, muitos deles adultos com mais de trinta anos. Dizia-se, que o faziam para compreender melhor os acontecimentos políticos do momento. A História estava na moda!
No fim do 1.º ano, parece que restavam apenas oitocentos e os que concluíram o curso eram menos de 500. Era voz corrente que as desistências se deviam ao envolvimento político de muitos deles.
Estávamos no 4.º ano, quando o Ministro da Educação, Sottomayor Cardia, fez uma reforma do ensino superior e passou alguns dos cursos da FL da UL de 5 para 4 anos. Eu fiz os 5 anos com receio de que a instabilidade daqueles tempos acabasse por reverter decisões anteriores, como via acontecer no quotidiano revolucionário.
O 25 de Novembro repôs a normalidade, diz-se. Mas essa normalidade levou tempo a instalar-se. Américo Tomás e a família regressaram, alguns empresários também, mas a tolerância do Presidente da República Ramalho Eanes para com o antigo presidente não me caiu bem. Hoje considero que foi acto piedoso, deixá-lo vir morrer à sua terra. Só em Portugal se perdoa facilmente aos políticos. A memória dos portugueses é curta, em tudo.

5. Que importância teve a Revolução dos Cravos na alteração do estatuto social das mulheres? Os direitos de igualdade entre mulheres e homens foram uma conquista da revolução?
R: Sim, a igualdade de direitos foi uma conquista do 25 de Abril, embora tardia, em comparação com outros países da Europa e do Mundo.
O novo Código Civil alterou radicalmente os direitos das mulheres na família, na sociedade e na política.
A igualdade de direitos foi instituída constitucionalmente, nos artigos 13.º, 109.º, mas as representações sociais e o quotidiano continuam a ser desfavoráveis às mulheres.
Apesar de estas terem reforçado a sua presença, visibilidade e participação na sociedade, na economia e na política, o seu contributo continua a ser desvalorizado e o acesso aos cargos de poder e lugares de decisão é ainda muito condicionado pelos preconceitos e representações sociais de género, assentes numa suposta inferioridade do sexo feminino.
Na família, a figura do chefe foi abolida, as mulheres deixaram de ser tuteladas pelo marido, podem viajar, decidir sobre a educação dos filhos, exercer uma profissão e tomar as próprias opções, sem o seu consentimento. Têm liberdade para serem pessoas e cidadãs conscientes e participativas. Podem escolher e decidir sobre si e sobre o que querem fazer da sua vida.
No entanto, alguns homens continuam a pensar que as mulheres são propriedade sua, por isso as controlam, as violentam e as matam, por "dá cá aquela palha".
E, o sistema judicial ou a "(in)Justiça", feita por alguns juízes que ainda vivem e se orientam pelos códigos do século XIX, desculpam esses homens e mandam-nos em paz com penas suspensas para poderem continuar as agressões, porque se eles agiram assim não foi por culpa sua; eles têm sempre atenuantes e elas são sempre culpadas, pois merecem todo o mal que lhes acontece. Os acórdãos desses juízes são uma afronta às mulheres e deviam envergonhar todo o sistema judicial e político.
As mulheres tiveram acesso à educação e desfizeram estereótipos que asseguravam serem elas menos inteligentes e incapazes que os homens.
Quarenta e cinco anos depois, as estatísticas e os estudos empíricos apontam, há vários anos, para um maior sucesso escolar feminino.
As raparigas terminam o ensino básico e secundário mais rapidamente e com melhores notas. Segundo os dados de 2016 que tenho à mão, são a maioria no ensino superior, 53,4%, 59% dos diplomados/as, entre licenciaturas, mestrados e especializações, 53,5% dos doutorados/as e 80% dos investigadores/as em ciência, embora só 1/3 sejam chefes de grupo.
Não quer isto dizer que as mulheres sejam mais inteligentes que os homens, mas sim, que elas há muito compreenderam que têm de adquirir melhores qualificações académicas se quiserem competir com os homens. Mesmo assim, são preteridas em benefício do sexo masculino.
Sendo as mulheres 52,6% da população portuguesa e estando mais preparadas academicamente, porque não ascendem aos lugares de topo, na sociedade, na economia e na política? Segundo os resultados das últimas eleições autárquicas, apenas 30, em 308 municípios, são geridos por mulheres, não atingindo sequer os 33,3% exigidos pela Lei da Paridade, o que nos leva a pôr em causa os critérios de escolha dos nomes para a constituição das listas eleitorais em lugares elegíveis. No governo actual andam à volta dos 30% e na chefia e lugares de decisão nas empresas continuam a ser avis raras, apesar da tentativa institucional de promover uma política de maior igualdade nos lugares de topo, pelo menos nas empresas cotadas em bolsa.
Depois do 25 de Abril, as feministas portuguesas puderam abraçar a defesa de causas mais específicas e que lhes diziam directamente respeito, esgotadas as razões da oposição ao regime autoritário anterior.
Lutaram pelo direito à contracepção e à despenabilização do aborto, tomaram iniciativas contra o tráfico de mulheres e crianças, a violência doméstica e de género, o assédio sexual nos locais de trabalho e no quotidiano, a mutilação genital feminina, a descriminação das minorias, migrantes, étnicas ou LGBT, e a favor da paridade na participação política e na tomada de decisão. Nas últimas décadas, conseguiram marcar a agenda política com a reivindicação de políticas públicas promotoras de mais igualdade entre homens e mulheres e no combate aos velhos preconceitos e estereótipos sobre os papéis de homens e mulheres na família, na sociedade e na vida profissional, quando reclamam medidas para uma maior conciliação entre a vida pessoal, a vida familiar e a vida profissional.
Neste âmbito, a Comissão Feminina, mais tarde Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres e, actualmente, Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, tem tido um papel importante.
Verificaram-se grandes mudanças nestes últimos 45 anos mas há ainda um longo caminho a percorrer para atingirmos a verdadeira igualdade entre os sexos. A luta pelos dir
eitos das mulheres é uma questão de direitos humanos.

6. Peço-lhe uma reflexão sobre o modo como evoluiu a memória deste período de transição política (ditadura para a democracia) nos últimos anos.
R: A memória sobre este período de transição tem passado por várias fases. Do enaltecimento e orgulho nacional por ser a revolução dos cravos, passou ao semi-esquecimento e, neste momento, há sectores que, subreptícia ou ostensivamente, estão apostados em denegrir as personagens e os acontecimentos e subverter os valores que a revolução prometeu e que, em parte, ainda não se cumpriram.
As comemorações já não movem as populações. O entusiasmo inicial e a esperança num futuro de maior justiça social, mais igualdade, solidariedade e democracia foi cedendo lugar à descrença, ao conformismo e ao desinteresse dos cidadãos e também ao desinvestimento político na mudança.
Dou apenas um exemplo. Nas eleições de 1975, esperei horas na fila para poder votar, nas últimas eleições houve 70% de abstenção.
O desinvestimento no SNS e na educação e as cedências progressivas aos interesses privados prejudicam a qualidade e a imagem da democracia.
Temo que a memória da Revolução se esgote na geração dos que a viveram e saudaram. A escola, que devia ser lugar de aprendizagem e de formação para a cidadania, não está a cumprir a sua função educativa. Muitos jovens não sabem o que foi e representou o 25 de Abril para Portugal. E, também não querem saber.
Culpa de quem? De todos ou de ninguém?
Estamos a ser coniventes com uma geração dividida entre uns poucos que ainda valorizam a educação e querem singrar através dela, e uma maioria alienada no mundo dos telemóveis, dos jogos electrónicos, da internet e quejandos. Que futuro para eles e para o país?

7. Que avaliação faz da democracia na atualidade?
R: Temos um regime democrático que tem descuidado muito a qualidade da democracia e acautelado pouco a sua preservação, seguindo a tendência internacional de eleger políticos medíocres, mais interessados no poder e interesses pessoais e familiares que na defesa dos bens públicos.
Salvam-se raríssimas excepções, mas é difícil apontar alguma.
A convivência pouco transparente e nada saudável para a democracia entre o poder político, a alta finança e os negócios particulares têm gerado escândalos sobre escândalos e processos judiciais sem fim que levam à desconfiança nos políticos e nos partidos, e à descrença no regime. Todos os dias somos confrontados com notícias sobre corrupção, compadrios, prevaricação, falsificação, abusos do poder, nepotismo, esbanjamento e desvios de dinheiros públicos, enriquecimentos ilícitos, má gestão, decisões lesivas dos interesses do Estado, aproveitamento de bens públicos, etc., etc. Os processos judiciais arrastam-se interminavelmente e nunca há culpados de toda a delapidação deste pobre país.
No entanto, uma coisa melhorou. Há mais espírito crítico e maior escrutínio dos actos dos políticos na gestão da res publica, embora pareça que eles desvalorizam esse quadro de avaliação popular permanente, pois não evitam nem corrigem os erros. As pessoas já estão cansadas de ouvir as palavras que todos repetem: 'tenho confiança na justiça'; 'estou de consciência tranquila'.
A fraca qualidade dos políticos e da gente que os rodeia, por escolha própria, está a descredibilizar os valores democráticos e a matar a democracia.
O pior de tudo, é que a tendência é geral, tanto nacional como internacional.
Em política, já não há figuras públicas de referência que possamos apontar como exemplos a seguir.
As forças da direita esfregam as mãos de contentes, à espera da derrocada final das democracias. Neste momento, trabalham intensa e descaradamente pela imposição das suas ideias e políticas retrógradas que, a serem implantadas, abririam caminho a sistemas ditatoriais mais poderosos e repressores que os do passado.
Os portugueses não filiados em partidos estão desiludidos com o rumo do país. Sim, porque só os militantes defendem os desvios éticos dos seus correligionários e as políticas erráticas de alguns chefes.
Vivemos 'Tempos Ruins', como escrevia Maria Teresa Horta, nos tempos da troica. Um belo poema oferecido às amigas e amigos e do qual aqui deixo os versos finais. Haja esperança!
Tempos ruins

(...)
Eu não descuro
procuro
a esperança acalentada
sonhada na desmesura
Entre ruínas passadas
sevícias, medos
torpezas
A poesia
e a beleza
A liberdade exaltada.
Lisboa, 03 Julho 2012
Maria Teresa Horta


Entrevista realizada por Ana Matilde Reis

Coordenação/Tutoria: Professora Ana Sofia Pinto