Judite Esteves

Judite Esteves é professora de História e professora Bibliotecária na Escola EB.2,3 Cardoso Lopes (Amadora).


1. Quais são as suas recordações mais marcantes sobre o regime do Estado Novo?
R: Quando penso no período do Estado Novo, sob o qual vivi os meus primeiros 15 anos de vida, a minha memória revela-me um puzzle de factos vividos mas não compreendidos.
Vivia nos subúrbios de Lisboa, primeiro na Amadora, depois em Queluz. O meu pai correspondia ao chefe de família exemplar para o Regime. Todos os dias se deslocava para a capital para trabalhar e obtinha rendimentos para manter de forma muito satisfatória a família, neste caso composta pela esposa e dois filhos, uma rapariga e um rapaz. Tudo se passava muito pacificamente e a realidade era aceite sem qualquer tipo de oposição. No entanto há coisas que só compreendi nos dias que se seguiram ao dia 25 de abril de 74...
Havia a frase do meu pai "É melhor não falar porque as paredes têm ouvidos..."
Havia a casa dos nossos queridos vizinhos, o Fernando, a Isabel e a filha Odete. Nessa casa ouvi contar as primeiras histórias infantis, "mil e uma vezes" a Isabel me contou a "história da carochinha", com um desfile interminável de animais que queriam casar com a carochinha... Mas aí, também ouvi relatos que descreviam a prisão do Fernando, uns polícias da Pide que entraram de noite em casa e bateram na Odete, a forma como a Isabel foi obrigada a trabalhar, de manhã à noite, deixando a Odete com três anos sozinha em casa, enquanto o Fernando estava preso. Ouvi a história da mãe do Fernando que morreu cega, por tanto chorar enquanto caminhava para ir visitar o filho na prisão. Não compreendi as duas tentativas de suicídio do Fernando. Não percebia por que razão ninguém dava emprego ao Fernando, ele que estava sempre a ler e sabia arranjar tão bem rádios. Não percebia o que era aquilo de comunistas... Havia um grupo deles em França que conseguiu que o Fernando e a Isabel fossem para aquele país. Continuei a não perceber a conversa da Isabel quando explicou à minha mãe que em França os comunistas não iam presos. Comunistas...devia ser um género de emprego, pensava eu.
Também só mais tarde percebi o que estava a acontecer quando um dia a Odete tocou furiosamente na nossa campainha e entrou a chorar e a dizer: "Eles vêm atrás de mim, eles vem atrás de mim!...mas eu já deixei o saco no Lugar da D. Hermínia..."
Quando a minha mãe perguntou o que trazia o saco, a Odete respondeu: "uns panfletos..." Eu teria cerca de 10 anos, não dava ainda para entender!
Nesse tempo, a escola primária era o que todos sabemos, a feminina e a masculina, o ensino essencialmente voltado para a memorização, sabiam bem as brincadeiras dos intervalos. Há porém imagens e situações que me marcaram principalmente pela injustiça que as impregnam e por ter sido possível serem evitadas pelos seus autores. Não seria exigência do Estado Novo dividir as crianças por filas...a dos bons, a dos "assim assim" e a dos "burros". A imagem da 3ª fila surge-me ainda acompanhada do cheiro a lenha queimada que a maioria dos meus colegas traziam, vindos essencialmente de um bairro de barracas, a imagem mais forte é a da Lurdes, magríssima, de pernas arqueadas e com cabelo fino e baço. Quando as alunas da fila dos "burro" mereciam a atenção da professora acabavam, na maioria dos casos, agredidas fisicamente. A injustiça era muita, nas escolas do Estado Novo.
No natal contactávamos de forma "animada" com a guerra do Ultramar. Os soldados que estavam a "defender a Pátria" desejavam à família "um Bom natal e um novo ano cheio de prosperidade..." Eram uns minutos que lhes eram dedicados na televisão, antes do telejornal. Ficava sempre à espera que se enganassem e debaixo do nervosismo desejassem "um novo ano cheio de propriedades..." Sabíamos que a guerra não era aquilo. Sabia do pai da Teresinha que tinha morrido na Guiné, do marido da D. Clotilde que tinha voltado cego. Ouvi o Jorge, amigo da Odete, acabado de regressar de Angola, contar como matou um bebé africano, um relato ainda hoje difícil, para mim, de descrever e devo tê-lo ouvido com 6 anos...
Assim se ia vivendo, na maior parte dos casos, na ignorância o que permitia a paz de espírito. Havia um dia por ano em que o meu pai sempre dizia: "Vamos lá ver se amanhã não vai haver problemas em Lisboa! Também só após a queda do Estado Novo percebi... O meu pai ficava sempre apreensivo no dia 30 de abril, véspera do 1º de maio...e pouco mais se dizia. Se alguma manifestação acontecesse, e sei que ele testemunhou algumas, existia a "comissão de censura" para evitar propagação de notícias desagradáveis para o regime.
Muita coisa era resolvida apostando no grande espetáculo do futebol, as discussões ficavam-se por aí, os do Benfica, os do Sporting e os do Porto... Na rádio ouvia-se muito fado e acreditava-se que todos tínhamos o nosso destino definido e depois havia a convicção que Nossa Senhora de Fátima nos protegia.
2. Onde se encontrava no dia 25 de Abril de 1974? Quais são as suas memórias sobre este dia?
R: Dia 25 de abril de 1974, uma quinta-feira, dia normal de escola. Tinha feito 16 anos dia 2 desse mês. Cerca das oito horas da manhã, ainda deitada, ouvi tocar a campainha da porta... A minha mãe abriu a porta e ali mesmo estava a D. Aurora, a vizinha que morava no andar ao lado, a informar que tinha havido uma revolução...ao que a minha mãe respondeu: "Ai não me diga...e eu ontem que não arrumei a cozinha". Eu ultrapassei imediatamente a questão da possível relação entre a cozinha desarrumada e a revolução (não dava para imaginar uma revolução a visitar a minha casa...) e pensei "aí está ela!". Na verdade gostava de estudar história e nela as revoluções são uma constante, daí me andar a interrogar, desde algum tempo, por que razão não aconteciam há tantos anos revoluções em Portugal. Andava a pôr essa questão a algumas pessoas que pensava poderem responder, mas nada de concreto era dito... Seria possível depois dos dias, meses e anos de confusão que se seguiram à implantação da República ter ficado tudo tão bem...onde estava aquela gente que lutava por mais justiça? Eu sabia que havia muita gente pobre. Gente a cair na rua, com fome. Eu assisti! Sabia que a Francisca se tinha apaixonado pelo José e o marido matou-a e não foi preso. Era assim, dizia-se que a tinha apanhado em flagrante... O marido tinha o direito de lhe tirar a vida. Sabia da tal guerra do Ultramar que nunca mais acabava...
Assim, achei que a revolução já estaria mesmo atrasada.
Não fui à escola e ficámos a tentar perceber o que se passava. Não me recordo bem, mas o meu pai que já estaria em Lisboa deve ter dado informações telefonicamente à minha mãe.
As minhas memórias da revolução situam-se no dia 27 de abril, sábado. Fui nesse dia a Lisboa com a minha mãe. O ambiente era ainda de revolução.
Logo à saída da Estação de comboios do Rossio ouvi o barulho de tiros. Havia soldados nos telhados, nos edifícios circundantes. Nas ruas as pessoas eram muitas e sentia-se uma alegria tensa.
Havia cravos vermelhos em muitas mãos. Entretanto, alguém gritou "Apanha que é da Pide!" Um homem foi rodeado por um grupo de pessoas que o agarrava. Entre uma imensidão de mãos o homem conseguiu tirar a carteira do bolso do casaco e dela o bilhete de identidade, gritando em simultâneo "Não sou, não sou!" Do grupo alguém disse "Não, não é Pide!" Todos recuaram dando palmadas nas costas do homem...tinha sido engano...
Outra recordação marcante surge do momento em que assisti, ainda naquele dia, à saída de elementos da Polícia Política das instalações daquele organismo, situadas na rua António Maria Cardoso, no Chiado. Dali saiam e eram conduzidos para carros militares. Eram muitos os populares que assistiam e gritavam insultos, tentando tocar-lhes, agredir, puxar o cabelo. 

3. Que impacto teve esta revolução na sua vida pessoal e familiar?
R: Os dias que se seguiram foram de descoberta. Como era possível ter vivido ignorando tanta coisa? Naqueles dias e durante os dois ou três anos que se seguiram acreditei que poderíamos caminhar para um mundo perfeito. Acreditei que a miséria iria deixar de existir e que a justiça dominaria. Nas paredes surgia a frase "nem mais um soldado para o ultramar"...era o fim de uma guerra que também só nessa altura percebi como estaria sempre perdida. Os capitães de abril eram os heróis. Apaixonei-me por Che Guevara e li "A História me absolverá" de Fidel de Castro. Recordo este livro com muito carinho. Requisitei-o na Biblioteca Municipal de Sintra e fazia parte dos livros proibidos que foram retirados de um depósito da Biblioteca após a queda da ditadura. As minhas convicções políticas iam-se formando e na altura pareceu-me que o comunismo seria a via para alcançar a justiça social.
Em casa, o meu pai, gerente de um supermercado que em Lisboa se impunha como uma referência na venda de produtos de luxo, sofria as consequências da crença dos trabalhadores que seriam agora eles a gerirem tudo o que até ali tinha sido dos capitalistas, os "Exploradores do povo e da classe operária". Foram tempos difíceis, de conflito social. Foi o tempo das ocupações...de fábricas, de campos. Em casa o drama vivido pelo meu pai no emprego era agravado pelas convicções dos filhos. O meu irmão com 14 anos aderiu à "União dos Estudantes Comunistas". No entanto, a educação e o respeito superou sempre as possíveis discordâncias. Recordo com carinho a paciência do meu pai a ouvir as tiradas revolucionárias do meu irmão quando regressava das reuniões no Partido Comunista.
No Liceu, muitos professores tiveram muitas dificuldades em se imporem perante os alunos... Era a revolta e as atitudes pouco dignas contra a professora de Introdução à Política que continuava defensora do uso de bata branca pelos alunos... Era o professor de História que não conseguia fazer-se ouvir e que saia da sala rodeado de saudações nazis por parte dos alunos. Eram os discursos na sala de convívio e as ameaças de greve às aulas.
Um novo ano surgiu após a conclusão do ensino secundário, sem aulas e sem possibilidade de aceder à universidade, foi chamado o ano do serviço cívico. Defendi acerrimamente que todos os estudantes deveriam ir para os campos, para as fábricas trabalhar ao lado dos camponeses, dos operários. No meu caso nunca aconteceu... Nunca houve organização que permitisse esta concretização.
4. Como avalia o período que se seguiu à Revolução dos Cravos (como descreve a transição política da ditadura para a democracia, quais são as suas memórias sobre este período, foi um período que a marcou em termos pessoais e/ou familiares - justifique)?
R: Este foi um tempo marcante que moldou, parece-me de forma positiva o que fui e o que sou. Voltando ao Liceu: ter aulas de Psicologia, estudar na disciplina de Filosofia a obra de Jean Paul Sartre, na disciplina de francês estudar Alberto Camus, Saint Exupéry e outros, permitiu um crescimento intelectual que naturalmente não podia decorrer da mesma forma sob o regime da ditadura.
Entretanto surge o namoro e aí entra na minha vida aquele que será meu marido. Milita no partido Socialista. Para conseguir meios económicos para acabar o curso de engenharia, consegue ir para a Guiné Bissau como cooperante. Foram cerca de 2 anos de cartas onde se descreviam as movimentações políticas sociais na Guiné por um lado e por outro tudo o que ia acontecendo em Portugal.
Quando entrei na Universidade Clássica de Lisboa, no curso de História, em 1977, a revolução ainda estava muito presente. Contavam-se episódios que tinham levado ao "saneamento" dos velhos professores. Estes foram substituídos essencialmente por recém-chegados das universidades francesas. Tinham sido jovens que, de alguma forma, tinham conseguido ir viver para França durante a ditadura e aí estudaram. Na sua maioria, voltaram impregnados de uma visão da História marcada pela ideologia marxista. Foi durante este período que comecei a acreditar que talvez a justiça social, com que tinha sonhado, não fosse possível.


5. Que avaliação faz da democracia na atualidade?

R: Temos a nossa democracia. O problema maior é o défice cultural que ainda existe em Portugal. Foi fácil e rápido voltar a dominar neste país os Fs: "Futebol, Fado e Fátima". E atrevo-me a lamentar que em Portugal se discuta muito mais futebol que política. Situação que agradaria a um qualquer ditador.
Talvez Portugal fosse um país melhor se se tivesse investido mais em Educação.



Entrevista realizada por Ana Matilde Reis
Coordenação/Tutoria: Professora Ana Sofia Pinto