Maria Helena Ângelo Veríssimo

Licenciada em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre em História Social Contemporânea pelo Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, da Universidade de Lisboa, com a dissertação "A classe dos jornalistas nos anos 30/40 - uma elite do Estado Novo". Doutorada em Educação, na área específica de Ensino da História e das Ciências Sociais, pela Universidade do Minho, com o projeto "A Avaliação de Competências Históricas através da interpretação da evidência: um estudo com alunos do ensino secundário". Professora de História do Ensino Secundário desde 1977 e professora convidada, em 2009, pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias para lecionar a cadeira de Didática Específica da História, no âmbito do Mestrado de Habilitação para a Docência de História e Geografia. Foi Vice-Presidente e Presidente da Direção da Associação de Professores de História (APH), formadora do Ministério da Educação no âmbito dos Novos Programas de História do Ensino Secundário e do Centro de Formação da Associação de Professores de História, no âmbito das Metodologias do Ensino da História. Membro do Conselho Consultivo do Gabinete de Avaliação Educacional do Ministério da Educação entre 2001 e 2008 e membro do Conselho Científico para a Avaliação dos Professores, por nomeação do Ministério da Educação, através do Despacho n.º 6753/2008.


1.Quais são as suas recordações mais marcantes sobre o regime do Estado Novo?
R: Vivi no período do Estado Novo até aos 17 anos, o que me permitiu ter uma consciência mais ou menos clara do que o regime representava, até porque o meu pai era uma pessoa esclarecida e um opositor ao regime, apesar de não exercer uma militância ativa.
Recordo sobretudo que me sentava com o meu pai em frente à televisão, nos dias de "Conversas em Família" e, à medida que Marcelo Caetano ia falando, nós íamos comentando, a maior parte das vezes com indignação, as suas palavras.
Lembro-me da espada que desde a década de 60 a minha mãe carregava sobre a cabeça ao imaginar que um dia o seu filho (o meu irmão, dois anos mais velho do que eu) teria que ir à guerra, entenda-se a guerra colonial, para a qual eram recrutados todos os jovens válidos do país, e na qual muitos morreram ou vieram física e ou psicologicamente mutilados.
Ainda no liceu, havia um enorme cuidado com as conversas que tínhamos entre amigos no Café Central, situado perto do meu liceu, onde se reuniam os estudantes e onde sabíamos que a maioria dos empregados eram informadores da PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado), a polícia política. Apesar de Marcelo Caetano ter mudado os nomes das instituições, e de a antiga PIDE nesta altura se denominar DGS (Direção Geral de Segurança), todos lhe continuávamos a chamar PIDE.
Entrei na Faculdade de Letras em 1973-74, pelo que ainda guardo memórias da vida académica antes do 25 de abril. As mais vivas dessas memórias estão relacionadas com a presença constante da polícia de choque na cidade universitária. Quando fazia o percurso desde a Faculdade de Letras, para ir almoçar à cantina, invariavelmente me cruzava com uma carrinha cheia de polícias de choque, armados até aos dentes, sentados em bancos virados para o exterior, e prontos a intervir logo que algo de "anormal" se verificasse. E lá estava também o inevitável carro da tinta, um carro que aspergia uma tinta azul indelével sobre os estudantes que ousassem, de alguma forma, manifestar-se e que, assim, ficavam marcados para serem facilmente "caçados".
Um dia em que tinha havido um meeting-relâmpago na cantina eu, sem saber de nada, entrei na cantina para almoçar e ainda hoje guardo o som das botas da polícia de choque e a imagem da formação de polícias de capacetes com viseiras, escudos e bastões, vinda na minha direção. Só tive tempo de me esconder, a tremer, atrás de uma coluna, até passarem.
Há memórias que não se apagam, umas más, outras boas. Sei ainda de cor muitas das letras das canções de protesto que ouvíamos e nos acalentavam a esperança do fim do regime.
No último ano do Estado Novo a oposição tornou-se mais forte, sobretudo devido à guerra colonial, e toda a gente leu o livro do Spínola "Portugal e o Futuro". Confesso que, apesar da péssima imagem que tinha do general, me lembro de ter tido o seguinte desabafo: isto só vai lá com os militares e, nem que seja o Spínola a fazer um golpe, pelo menos é sinal de que as coisas vão mudar. Depois, logo se vê...


2. Onde se encontrava no dia 25 de abril de 1974?

R: E viu-se! Felizmente não foram os militares afetos ao Spínola a fazer o golpe, embora ele tivesse tentado controlar a posteriori os acontecimentos.
No dia 24 de abril estudei até tarde para uma frequência de Cultura Clássica que iria ter no dia 25, e pedi ao meu pai (sempre o primeiro a levantar-se), que me acordasse cedo, porque não queria chegar tarde à Faculdade.
Quando acordei e vi as horas fiquei furiosa e a protestar porque ia chegar atrasada à frequência, ao que o meu pai me respondeu que não iria a lugar nenhum, porque estava a acontecer uma revolução.
Logo nos agarrámos à rádio, ansiosos por perceber para que lado tombava a situação e, pelas 10h da manhã a linguagem usada nos comunicados começou a ter uma conotação claramente pró-democracia, o que nos foi tranquilizando, embora ao princípio quase não acreditássemos. Afinal, tinham sido 48 anos sem fim, que atravessaram toda a vida dos meus pais e a minha até então.

3. Quais são as suas memórias sobre este dia?
R: Vivi o dia numa ansiedade constante, desejosa de ir para a rua, mas sem autorização para isso e só da parte da tarde saí para visitar uma amiga que fazia anos. A rádio foi a minha grande companheira, porque a emissão televisiva só começava ao fim da tarde. Mas as imagens que se viram nesse final de dia foram inesquecíveis. Ainda hoje, quando revejo os documentários não deixo de sentir aquele arrepio de felicidade, mesclada de nostalgia.
Lembro-me do comunicado da Junta de Salvação Nacional, à noite, na televisão e da dúvida que então me assomou, se a revolução se estava a dirigir no sentido que eu desejava.


4. Que impacto teve esta revolução na sua vida pessoal e/ou familiar?

R: Na minha vida familiar, o maior impacto foi o meu irmão já não ser recrutado para a guerra colonial.
Já a nível pessoal, muita coisa mudou. O curso, na Faculdade, foi interrompido para reestruturação e lembro-me de participar em todas as reuniões que então se fizeram, nas quais os estudantes passaram a ter uma palavra, diria mesmo a palavra, pois assisti a coisas que nunca tinha pensado possíveis, como uma assembleia de curso sanear professores ou rejeitar o recrutamento de catedráticos conhecidos e reconhecidos. Mas eram essas as dinâmicas da altura, e agia-se como em qualquer período revolucionário conhecido da História.


5. Como avalia o período que se seguiu à Revolução dos Cravos (como descreve a transição política da ditadura para a democracia, quais são as suas memórias sobre este período, foi um período que a marcou a nível pessoal e/ou familiar- justifique)?

R: Este período foi para mim muito marcante, primeiro porque tive a possibilidade de, no dia 25 de abril de 1975, votar pela primeira vez, como aliás a grande maioria do povo português. Foi uma sensação indescritível. Depois, porque me envolvi na militância política, numa organização da juventude estudantil, o que me proporcionou experiências para mim até então inimagináveis. Recordo a inconsciência romântica de um grupo de estudantes durante as barricadas do "Verão quente" de 75, a revistarem veículos na ponte sobre o Tejo; a generosidade e a solidariedade dos mesmos estudantes nas campanhas de alfabetização e da Reforma Agrária no Alentejo; os sonhos de uma juventude que vivia a revolução em pleno, sem se deixar abalar pelos reveses próprios dos processos revolucionários.


6. Peço-lhe uma reflexão sobre o modo como evoluiu a memória deste período de transição política (ditadura para a democracia) nos últimos anos.

R:O facto de ser professora de História e de, sempre que trato a temática, me utilizar a mim própria como fonte histórica, fez-me guardar muitas destas memórias, no entanto pontuadas pela investigação e pelas reflexões que, entretanto, fiz, bem como pela análise dos historiadores que tenho estudado.
Para mim, hoje, o período revolucionário teve todos os ingredientes que lhe são próprios - os excessos, embora mitigados pelos "brandos costumes", a generosidade, a solidariedade, os encontros e desencontros, os velhos amigos perdidos para o outro lado da barricada e os novos amigos encontrados na mesma comunhão de ideais.

7. Que avaliação faz da democracia na atualidade?

R: A democracia atual é a que é, pelos contextos existentes. Em primeiro lugar, não podemos perder a noção de que a um período revolucionário normalmente se segue um período de estabilização, o que aconteceu no seguimento da publicação da Constituição de 1976. Hoje somos um estado de direito, regido por uma Constituição, com órgãos democráticos que, melhor ou pior, funcionam.
Em segundo lugar, as nossas circunstâncias, nomeadamente a nossa necessidade de desenvolvimento, no contexto dos países mais avançados da Europa, levou-nos à inevitável adesão à então CEE, antecessora da União Europeia a que pertencemos, e que nos condiciona.
Finalmente, a nossa democracia, hoje, é também o resultado do mundo global em que nos situamos e do qual não podemos fugir.
Mas, para quem conheceu o país cinzento e atrasado do Estado Novo como eu o conheci, estamos hoje, felizmente, muito distantes, apesar de algumas permanências e retrocessos a nível de mentalidade, próprios da marcha da História, que sabemos não ser linear.



Entrevista realizada por Ana Matilde Reis
Coordenação/Tutoria: Professora Ana Sofia Pinto