Maria Inácia Rezola

Doutorada em História pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (especialidade História Institucional e Política Contemporânea) e investigadora do Instituto de História Contemporânea da mesma faculdade. É Professora Adjunta na Escola Superior de Comunicação Social (ESCS-IPL), onde coordena a seção de Ciências Humanas e integra o Conselho Científico do Doutoramento em Ciências da Comunicação (ISCTE-ESCS).
Tem uma ampla experiência no domínio da investigação, tendo dirigido e integrado numerosas equipas de trabalho em colaboração com diferentes instituições. Organizou cerca de uma dezena de colóquios e conferências e apresentou comunicações em cerca de três dezenas de eventos científicos. Da sua produção bibliográfica destacam-se os livros "Melo Antunes, uma biografia politica" (Âncora, 2012); "25 de Abril - Mitos de uma Revolução" (Esfera dos Livros, 2007); "Os Militares na Revolução de Abril. O Conselho da Revolução e a Transição para a Democracia em Portugal (1974-1976)" (Campo da Comunicação, 2006); "António de Spínola" (Círculo de Leitores, 2002); "O Sindicalismo Católico no Estado Novo" (Estampa, 1999) e a coordenação das obras "Dicionário de História de Portugal - o 25 de Abril" (com António Reis e Paula Santos, Figueirinhas, 2016, 8 vols.), "O Longo Curso - estudos em homenagem a José Medeiros Ferreira" (com Pedro Aires Oliveira, Tinta Da China, 2011) e "Democracia, Ditadura, Memória e Justiça Política" (com Irene Pimentel, Tinta da China, 2014).



1.Escreveu um livro intitulado "25 de Abril: Mitos de uma Revolução". Quais são alguns dos mitos da Revolução analisados nesta obra?
R: O livro 25 de Abril, Mitos de uma Revolução (Esfera dos Livros, 2007) teve como principal objectivo fazer um balanço e síntese sobre o período revolucionário, numa perspectiva de divulgação histórica. Tratando-se de um período muito recente da História de Portugal, a história da Revolução de 1974-1975 encerra múltiplos desafios e coloca o historiador perante algumas ideias feitas (nem sempre exactas ou devidamente explicadas) ou episódios nebulosos sobre os quais é necessário lançar novas luzes. É o caso, por exemplo, da ideia frequentemente difundida de que na origem da mobilização dos capitães esteve exclusivamente o desejo de acabar com a guerra colonial ou a de que a institucionalização do MFA foi um acto unilateral dos militares que a impuseram aos civis ou ainda a de que os partidos políticos foram coagidos a assinar a Plataforma de acordo constitucional com o MFA. Todas estas afirmações necessitam de uma correcta fundamentação e contextualização que, no final, lhes altera substancialmente o sentido. É sobre estas e outras ideias pouco claras ou, muitas vezes, mal fundamentadas, que este livro incide.


2. Após o 25 de abril viveram-se tempos de grande agitação. Gostaria que me falasse sobre este período da História de Portugal.

R: Os 19 meses de revolução são pródigos em acontecimentos: três tentativas frustradas de "golpe" de estado; seis governos provisórios; dois presidentes da República; a intervenção dos militares na política; as alianças que os seus diversos sectores estabelecem com diferentes grupos políticos e movimentos sociais; a acção dos partidos e movimentos políticos; as nacionalizações e o desencadeamento da reforma agrária; as experiências de controlo operário e auto-gestão; a multiplicação das iniciativas populares; os casos República e Renascença e toda a turbulência que percorre o campo dos média; a desconfiança das potências ocidentais de que Portugal se transformasse num cavalo de Tróia da NATO; o debate sobre a essência do socialismo português, permitindo a coexistência de experiências e concepções radicais com projectos políticos mais tradicionais que apontavam para a instauração de uma democracia parlamentar de tipo Ocidental ou, então, para um modelo estatizante, inspirado na experiência soviética; o peso esmagador da política que inunda as ruas, os quartéis, as fábricas, os campos; ... Todas as possibilidades estavam em aberto sendo que, no final, com diz Eduardo Lourenço, esta foi "a Revolução possível e lúcida" que abriu as portas à democracia.


3. A independência das colónias provocou o regresso a Portugal de muitas pessoas que aí viviam. Quais foram as dificuldades que estas pessoas enfrentaram quando chegaram ao nosso país?

R: As dificuldades foram, inevitavelmente, múltiplas. Basta pensar que muitos dos que deixaram as até então colónias viveram situações de guerra, tiveram de deixar para trás os seus pertences e tiveram de começar as suas vidas do zero. Os dramas humanos que, durante vários meses, foram observáveis no cais de Alcântara, no cais da Rocha do Conde de Óbidos ou no aeroporto de Lisboa, ferem a imagem de uma "descolonização exemplar" que ainda hoje, como então, é insustentável. Como muitos já o observaram (cite-se, a título de exemplo, Melo Antunes, figura do MFA directamente ligada ao processo), a descolonização foi uma tragédia, tal como foi uma tragédia a colonização. Uma tragédia que começou por vitimizar os que, durante séculos, viveram privados da sua independência, mas que acabou por atingir muitos outros.
Regressando à questão, é necessário recordar que, ainda que tenham sido criadas estruturas como o Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais (IARN), as dificuldades foram muitas, mesmo quanto a questões elementares e vitais como a habitação ou o emprego. Alguns tiveram a vantagem de dispor de redes familiares e de amizades que lhes asseguraram condições de sobrevivência digna, mas outros não. Num país a atravessar profundas convulsões, como foi o caso do Portugal de 1974-1975, o processo de integração não foi fácil e os dramas pessoais ainda hoje são recordados.


4. Qual é a visão dos "retornados" sobre a Revolução dos Cravos? Culpabilizam-na pelas dificuldades que enfrentaram?

R: Ainda não existe um estudo sistemático sobre esta realidade que nos permita fazer afirmações peremptórias. No entanto, a julgar pelos testemunhos que, ao longo das últimas décadas, foram publicados, quer na forma de livro quer por diferentes meios de comunicação social, é possível verificar que esta é uma memória multifacetada e plural. É evidente que muitos dos testemunhos deixam transparecer ressentimentos e um tom acusatório, responsabilizando a revolução e alguns dos seus protagonistas, pela situação dramática que alguns viveram. No entanto, também é possível ouvir vozes denunciando a situação que se vivia antes do 25 de Abril (a Ditadura, o colonialismo, etc.) como injusta e insustentável e exaltando a forma como se operou a sua integração na sociedade portuguesa. Em suma, este continua a ser um tema fracturante, sobre o qual ainda existem feridas na memória colectiva, ou pelo menos em sectores da sociedade portuguesa, mas onde progressivamente se abre terreno a um debate sereno quer sobre o passado colonial, quer sobre a forma como se procedeu à descolonização (nas suas diferentes dimensões).


5. Quais foram as principais mudanças ocorridas em Portugal, após o 25 de abril, em termos políticos, económicos e sociais?

R: As mudanças foram profundíssimas em todos os domínios que enuncia - o país a "preto e branco", de 24 de Abril de 1974, dá lugar a um "país a cores".
A "primeira" mudança, transversal e fundamental para todas as outras que se operaram, foi, sem dúvida, a democratização, isto é, a instauração de uma democracia representativa pluripartidária. Depois de quase meio século de Ditadura, de privação de liberdade, de repressão, nasce o Portugal democrático. Foi um processo duro, muitas vezes difícil, rodeado de disputas e tensões, experiências nem sempre bem-sucedidas, mas que abriu portas a aspectos tão importantes como a modernização da sociedade e economia portuguesas e a sua aproximação à Europa (processo que tem como ponto de referência central a adesão à então designada Comunidade Económica Europeia - CEE).
A democratização opera-se também noutros domínios: na educação e no ensino, no acesso à saúde, no emprego, na família, na economia, na justiça, nos valores, ...
A título de exemplo, para que se possa ter uma percepção do que mudou nestas quatro décadas e meia, podemos referir que se antes do 25 de Abril a taxa da população portuguesa que não sabia ler nem escrever rondava os 26%, actualmente esse valor situa-se em cerca de 5% e a escolarização é obrigatória até aos 18 anos.


6. E o que mudou no ensino com esta revolução?

R: Fortemente ideologizado, durante o Salazarismo o ensino mereceu uma particular atenção do regime. Estabelecendo um regime de "livro único" (fundamental na centralização e controlo do ensino), moldou o ensino aos seus valores, utilizando-o como um instrumento de inculcação desses mesmos valores. Promoveu também organizações como a Acção Escolar Vanguarda e a Mocidade Portuguesa, no contexto desse projecto mais amplo de doutrinação, controlo e inculcação ideológica dos seus valores.
A Revolução do 25 de Abril abre, também neste domínio, uma nova era. Ainda que nos últimos anos do Regime, no decurso de designado Marcelismo, se tenham operado algumas mudanças - nomeadamente no âmbito da chamada "reforma Veiga Simão" ou mesmo dos movimentos associativos de professores - a verdade é que será apenas com a revolução que se opera a verdadeira ruptura na educação. Este terá sido, aliás, um dos sectores mais dinâmicos da revolução, palco de amplas mobilizações e transformações, nomeadamente no domínio da formação dos professores, da reformulação de currículos e programas, no domínio da pedagogia, da gestão escolar e muitos outros. Assiste-se também ao desenvolvimento de iniciativas pioneiras como a breve e atribulada experiência do Serviço Cívico Estudantil ou a implementação das atividades de contacto no âmbito dos currículos das Escolas de Magistério. Professores e educadores alteram radicalmente o seu discurso e uma "vivência da utopia" entra na escola, numa clara reacção à ditadura.


Entrevista realizada por: Ana Matilde Reis
Coordenação/Tutoria: Professora Ana Sofia Pinto