Luís Vargas

Luís Miguel de Serpa Soares Vargas, nascido em 1961, em Díli-Timor, realizou estudos no Colégio Militar e na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Bibliotecário em funções de Direção de Serviços de Educação, Cultura, Desporto e Desenvolvimento Social na Câmara Municipal da Amadora.


1. Quais são as suas recordações mais marcantes sobre o regime do Estado Novo?
R: A guerra. A partida do meu tio João Francisco para a Guiné, em 3 de abril de 1971, a 28 do mesmo mês, numa ronda, um soldado português, em pânico, disparou à queima roupa as 20 balas do carregador. Dezassete perfuraram-lhe o corpo. Tinha 22 anos era estudante em Coimbra e estava a cumprir o serviço militar obrigatório. Em junho, partiu o meu tio Corte Real, oficial do quadro, colocado em Bafatá, Guiné. Em novembro, partiu o meu pai para Nova Lamego, Guiné, zona interdita a civis por ser cenário de guerra. Regressaram em 1973. No Colégio Militar vivíamos com alguma intensidade a guerra lá longe. As notícias, as boas e as más, tinham impacto pessoal nas nossas vidas - em particular lembro-me do episódio da morte do pai do meu camarada do Colégio Militar.
Na ausência do meu pai recebemos, como usual, a visita do meu tio Fernando - lembro-me da zanga da minha mãe com o irmão que espalhou imensos pacotes pela casa, escondendo-os, para mais tarde, os transportar para Coimbra numa ação clandestina do PCP contra a guerra - na ocasião só percebi o mal estar pela distribuição de pacotes pelos armários e gavetas.

2. Onde se encontrava no dia 25 de Abril de 1974? Que memórias tem deste dia?
R:
No Colégio Militar. O General Spínola a caminho do quartel da Pontinha passou por lá em coluna militar para saudar os «meninos da luz». Enfim mais para ser saudado pelo corpo de alunos, oficiais e professores. Nesse dia, estávamos todos com a revolução e pelo fim da guerra. Ovacionamos a coluna militar dos militares. 

3. Que impacto teve esta revolução na sua vida pessoal e/ou familiar?
R:
O meu pai aderiu ao movimento e esteve muito empenhado no quotidiano da revolução pois pertenceu à comissão de extinção da PIDE/DGS. A minha mãe participou nas campanhas de alfabetização, para além da sua vida profissional. Cada dia era um novo desafio com imensas novidades, importava fazer escolhas e tomar decisões. Havia uma ampla liberdade individual. Aprendemos a capacidade da descoberta e de nos surpreender. As campanhas de um dia de trabalho para o país, a apanha do tomate numa cooperativa do Alentejo. A descoberta de nós e do nosso país que não era apenas a nossa realidade. 

4. Como avalia o período que se seguiu à Revolução dos Cravos (como descreve a transição política da ditadura para a democracia, quais são as suas memórias sobre este período, foi um período que o marcou a nível pessoal e/ou familiar)?
R:
Olhando hoje, espanta-me a extrema ingenuidade mas também a persistência de caminhar. Creio que todos sabíamos o que não queríamos: o passado, a guerra, a ditadura, a prisão pelo delito de opinião, também o país miserável - das pessoas na miséria - que descobrimos. Isso sabíamos que não queríamos. O caminho fez-se caminhando, corrigindo rumos, uma vez que o plano, à boa moda portuguesa, era generalista e demasiado imponderável considerando, os rumores, a instabilidade e a guerra fria. O acolhimento de um milhão de portugueses que regressaram das colónias africanas, a descoberta de nós, a descoberta dos outros, a entrada na Comunidade Europeia, as novas fronteiras que a tecnologia abriu, a tolerância para não chegar a vias de facto de uma luta civil, o pequeno território português em que todos nos conhecemos, somos parentes ou somos amigos de alguém que se conhece, o isolamento relativamente aos outros, o desmesurado orgulho nacional e individual, a cultura dos direitos que se sobrepõem aos deveres, o desconhecimento dos outros e de outras realidades agora como no fim do século XIX, atual a conferência proferida por Antero, em 1871 , "causas da decadência dos povos peninsulares". Definitivamente marca a qualidade da nossa democracia.

5. Peço-lhe uma reflexão sobre o modo como evoluiu a memória deste período de transição política (ditadura para a democracia) nos últimos anos.
R:
Os murais do MRPP, os grafismos da informação e propaganda política, as greves, as manifestações e os comícios do PCP, do PS e da UDP, também o do PSD, em Beja, os cabelos e bigodes compridos, as calças à "boca de sino", o "já" e as certezas das nossas sapiências. Lisboeta com 14, 15, 16 anos vivi, com amigos e familiares, de todas as idades a "história ao vivo", em direto. Não nos contaram, vivemos e estávamos convencidos que cada um de nós faria a diferença e era imprescindível no caminho que tomávamos e esse seria o foco, o futuro porque o passado - "fascismo nunca mais" - tinha a importância de ser/estar enterrado e o futuro estava já ali.

6. Que avaliação faz da democracia na atualidade?
R:
É a que merecemos e somos capazes de construir. Não há milagres enquanto formos poucos a estudar, viajar e a deslumbrar-nos com a descoberta. A capacidade de descobrir novos mundos ou realidades diferenciadas e incorporá-las no nosso quotidiano é a nossa riqueza. Foi assim no passado que glorificamos será quando tomarmos a consciência que não estamos sós e temos muito a aprender. Não creio possível o desenvolvimento de uma sociedade assente nos direitos e a ignorar os deveres. Invejo a democracia inglesa - tem aproximadamente 700 anos, quando João Sem Terra, se sujeitou ao Parlamento. Têm um Boris Johnson nascido três anos depois de mim, em Nova Yorque, com um parlamento muito complexo. Já fazem falta à Europa, decorrente da sua ausência, nestes dois longos anos, entretidos com o Brexit. Se desvincularam de construir o futuro comum.Tenho esperança na Europa.



Entrevista realizada por Ana Matilde Reis
Coordenação/Tutoria: Professora Ana Sofia Pinto