Irene Flunser Pimentel

Irene Flunser Pimentel é doutorada em História Institucional e Política Contemporânea, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Elaborou diversos estudos sobre o Estado Novo, o período da Segunda Guerra Mundial, a situação das mulheres e a polícia política durante a ditadura de Salazar e Caetano. É investigadora do Instituto de História Contemporânea (FCSH da UNL) e tem uma vasta obra editada no campo da História Contemporânea.


1.Quais são as suas recordações mais marcantes sobre o regime do Estado Novo?
R: Não sou caso único, pois já muitos e muitas me disseram o mesmo. Apesar de Portugal ser um país colorido, cheio de sol, lembro-me em caricatura de um país a preto e branco, cheio de hierarquias, com ricos a mandarem e pobres a obedecerem, com crianças e mulheres descalços, bem como com enormes desigualdades. Pobres e ricos não se relacionavam de forma igualitária e era rara a mobilidade social, pois quem nascia filho de sapateiro, em princípio não poderia estudar e viria também a ser sapateiro. Claro que estou a descrever um país a preto e branco, que também tinha várias tonalidades de cinzento. Mas era pobre, atrasado, hierarquizado, elitista e profundamente desigual socialmente e tinha um regime ditatorial em que imperava a polícia política, as proibições e a censura.


2.Onde se encontrava no dia 25 de Abril de 1974?
R: Vivia em Lisboa, já num apartamento meu, partilhado com uma prima e, curiosamente, na véspera ou na madrugada, pelas 2 horas de dia 25, estive com camaradas a distribuir panfletos clandestinos contra o regime ditatorial e a guerra colonial nas ruas. Sem saber que, no dia seguinte, a ditadura que combatíamos já não existia, ou estava a ponto de soçobrar. A minha casa, no centro de Lisboa, era perto do Rádio Clube Português, cuja rua atravessei de madrugada, sem saber que já estava tomado pelas forças do MFA.


3.Que impacto teve esta revolução na sua vida?
R: O golpe de Estado militar de 25 de Abril de 1974, que rapidamente se transformou num processo revolucionário teve um impacto extraordinário sobre toda a minha vida e as pessoas que me eram próximas. Na actividade política, a liberdade de actuar sem olhar se estaria a ser vigiada pela polícia política, e sem ameaças de vir a ser presa. Enquanto cidadã, passei a poder votar, a falar livremente, a manifestar-me abertamente e, a considerar-me, a prazo, em condições de igualdades com pessoas menos privilegiados do que eu. Enquanto mulher, não só a lei mudou completamente, o marido deixou de ser o "chefe de família" ao qual a mulher devia obediência, como se enveredou para um caminho de igualdade entre géneros, num processo conturbado e difícil, mas evidente.
4.Como avalia o período que se seguiu à Revolução dos Cravos (como descreve a transição política da ditadura para a democracia, quais são as suas memórias sobre este período, foi um período que a marcou - justifique)?
R: No chamado Processo Revolucionário em Curso (PREC), a palavra saiu à rua, as pessoas reivindicaram tudo a que não tinham direito anteriormente, lutaram e pretenderam obter tudo no imediato: pão, liberdade, habitação, saúde e trabalho. No dia 24 de Abril, havia censura e polícia política e, no dia 26 de Abril, os presos políticos foram libertados e a PIDE/DGS e outras polícias repressivas foram extintas ou deixaram momentaneamente de actuar. Os nossos colegas, irmãos e namorados deixaram de ter o espectro da guerra colonial, onde qualquer jovem era obrigado a prestar serviço militar, ou a sair do país, desertando, para nunca mais voltar. Foi sobretudo um período de discussão nas ruas, de vontade de erguer um novo Portugal, com os exageros e as radicalizações próprias de uma época revolucionária em que o velho caía e o novo estava a ser construído, com várias alternativas políticas.


5.Peço-lhe uma reflexão sobre o modo como evoluiu a memória deste período de transição política (ditadura para a democracia) nos últimos anos.
R: Consoante as épocas e se sucederam a uma ruptura de regime, período revolucionário e transição democrática, assim se modifica também a memória. Esta também muda enquanto se sucedem as diversas gerações: as mais novas têm memórias diferentes das que expressam evidentemente os seus antecessores: habitualmente, os filhos "rebelam-se" contra os pais e aproximam-se dos avós. Habitualmente, assinala-se que a memória de um processo, por ruptura como foi o português, atravessa várias fases, que se sucedem e modificam a memória, ao mesmo tempo que são influenciadas por esta. Em os cerca de 40 a 45 anos que nos separam temporalmente do 25 de Abril de 1974, já houve pelo menos três a quatro gerações. E podemos caracterizar também que se sucederam cerca de quatro a cinco fases: 1) uma fase de "quebra do espelho" em que se pretende rapidamente acabar com as instituições do regime anterior 2) habitualmente, sucede uma fase de calma, depois da radicalização e da agitação, e começa-se a esquecer o passado recente, em nome da construção do presente e do futuro 3) e 4) seguem-se fases lentas ou mais rápidas, consoante os traumas, de um regresso, por vezes difícil, da memória e 5) e por vezes há tanto uma míngua, como um excesso de memória sobre a ditadura e a transição para a democracia. Isto tudo descrito em traços muito gerais.


6. Que avaliação faz da democracia na atualidade?
R: Depende se estamos a falar do mundo e da Europa, ou só de Portugal. A nível mundial e até europeu, a democracia está em perigo em muitos países, a começar pelo Brasil de Bolsonaro, as Filipinas de Duterte, os EUA de Trump ou a Hungria de Órban. Portugal está por enquanto a escapar ao peso do populismo nacionalista de direita, racista e xenófobo, mas não penso que esteja completamente livre de ser atingido por essa vaga. Felizmente, vivemos ainda numa democracia a funcionar e em geral não há muitos que desejam o regresso da ditadura, da polícia política e da censura. Mas temos de saber defender essa democracia e pensar que ela pode terminar. Por outro lado, todas as conquistas de liberdade e igualdade podem vir a soçobrar às mãos dos seus inimigos. Cabe-nos mantermos valores éticos, um conhecimento sobre o que se passa e sabermos distinguir entre a verdade e a mentira.

Entrevista realizada por Ana Matilde Reis
Coordenação/Tutoria: Professora Ana Sofia Pinto