Entrevista: Luís Farinha

Professor do Ensino Secundário. Licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (1975). Professor convidado da Faculdade de Letras de Lisboa (1989-1991); Doutorado em História Política e Institucional do século XX (NOVA FCSH), 2003; Diretor-adjunto da Revista História (2002-2007); Investigador do Instituto de História Contemporânea (1994- ); Vice Presidente do Instituto de História Contemporânea (2010-2015); Comissário da Exposição "Viva a República! 1910-2010", no âmbito das Comemorações do I Centenário da República, Cordoaria Nacional, 2010; Coordenador da Coleção Parlamentares da I República, Assembleia da República (2008-2013); Membro da Comissão Instaladora do Museu do Aljube - Resistência e Liberdade (2014-2015); Diretor do Museu do Aljube - Resistência e Liberdade (2015-); Comissário da Exposição "Morte à Morte! 150 anos da Abolição da Pena de Morte em Portugal / 1867-2017", Assembleia da República (2017).


1.Onde se encontrava no dia 25 de Abril de 1974?
R: Dirigia-me para o trabalho, muito próximo de Odivelas. Quando soube do golpe militar, embora já tivesse sido alertado em casa pela minha mãe que algo de anormal estava a acontecer; já não fui para o trabalho e corri para o local dos acontecimentos, na Baixa de Lisboa, onde passei uma grande parte do dia 25 de Abril. À tarde voltei a casa porque ansiava ver o meu grupo de amigos e festejar com eles aquele dia. Passámos grande parte do fim de dia e da noite ouvindo rádio e vendo televisão. E aprendendo, aprendendo muito. Nada do que ouvíamos e ouvíamos era usual; chegava aos nossos ouvidos e aos nossos olhos como um outro mundo, que tínhamos dificuldade em entender, apesar de muitos de nós termos tido uma militância ativa nos sindicatos, na Universidade e, nalguns casos, como o meu, em organismos da Igreja que se mostraram muito críticos do regime nos anos 70.

2.Quais são as suas memórias sobre este dia?

R: De uma enorme perplexidade, por não entender que tal acontecimento estava a acontecer, que podia acontecer. Como tantos portugueses, desejava a mudança, mas achava-a difícil. Ter acontecido foi completamente inesperado. Julgo que era a sensação de todos os milhares de pessoas que se concentravam na zona da Baixa, Rossio, Largo do Carmo. Já com o golpe praticamente ganho, continuávamos com medo de que tudo pudesse voltar atrás. Por isso, memórias de medo, de perplexidade, de euforia. De Espanto, a melhor palavra para tudo o que víamos e que julgávamos impossível.

3.Que impacto teve esta revolução na sua vida pessoal e/ou familiar?
R: Assumi maiores responsabilidades profissionais (passei a gerente comercial de uma rede de supermercados onde só podia ser até aí ajudante de armazém). Ninguém podia ter um emprego antes de ter ido à guerra colonial; experimentei a atividade política militante - ocupámos um espaço de armazém (que durante muitos anos ostentou na fachada «Ocupado pela População») e dedicamo-nos à alfabetização de adultos, entre outras atividades culturais e políticas; pude continuar o meu curso como trabalhador estudante (estava nessa altura no 3º ano da Faculdade de Letras). Antes não havia hipótese de trabalhadores estudantes, como eu, poderem tirar os seus cursos. Em 1970/71, na Faculdade de Direito, todos os trabalhadores estudantes foram corridos com notas de 0 a 4, por serem trabalhadores estudantes.
Casei e constituí família muito cedo - a vida parecia-nos a todos muito prometedora; participei na gestão dos «Supermercados do Povo», uma empresa gigante formada por supermercados que os patrões tinham abandonado; melhorei muito o meu nível de vida - passei a ganhar o dobro do que ganhava antes do 25 de Abril. Preparei-me para ir cooperar no campo da educação em Cabo Verde, o que não aconteceu porque, entretanto, constituí família e fui colocado, no primeiro concurso nacional de professores que houve no país, no designado «Xangai» - a Baixa da Banheira, um sítio esplêndido onde alunos e professores constituíam uma verdadeira comunidade.
4.Quais são as suas recordações mais marcantes sobre o regime do Estado Novo?

R: Ter sido várias vezes «encurralado» na cidade universitária por ação da brigada do Capitão Maltês; ter sido preso pelo facto de distribuir propaganda da oposição durante a campanha eleitoral de 1973 para a Assembleia Nacional; viver-se em pobreza, em especial nas aldeias do interior do país; correr o risco de ser mobilizado para a guerra colonial (o que nunca chegou a acontecer, porque tinha 20 anos quando ocorreu a Revolução de 25 de Abril e fui integrado na reserva territorial); viver, com outros jovens da minha idade, uma esperança muito grande de mudança, que só podia ser para um mundo melhor. Acreditávamos muito na mudança para um mundo melhor.

5.Como avalia o período que se seguiu à Revolução dos Cravos (como descreve a transição política da ditadura para a democracia, quais são as suas memórias sobre este período, foi um período que o marcou a nível pessoal e/ou familiar- justifique)?
R: O período revolucionário de 1974/1975 foi um período extraordinário de vivências sociais, políticas e culturais muito significativas para todos. Passámos a ver os filmes proibidos antes pela Censura, partilhámos o poder popular e democrático em muitas situações (nas empresas, na Universidade, nas comissões de trabalhadores, nas comissões de moradores). Foi um tempo também atribulado, com muitas alterações na vida do país e com grandes sobressaltos, porque uma revolução, mesmo curta no tempo, como aconteceu com a nossa, não deixa de ser um tempo vivido com uma extraordinária intensidade. Um tempo único: a nossa Constituição, os nossos órgãos democráticos, a nossa vivência política e cultural é ainda hoje diferente (por exemplo daquela que acontece em Espanha) porque vivemos uma revolução que deixou marcas profundas que mal pressentimos hoje, particularmente os que já nasceram depois. Foi um período que nos marcou muito, individual e coletivamente: éramos medrosos, fechados, tristes e tornámo-nos mais participativos, crescemos culturalmente e tornámo-nos uma sociedade europeia e aberta ao mundo. Evidentemente que muitos sonhos ficaram pelo caminho: chegámos, por exemplo, a pensar que era possível um desenvolvimento integrado do país, com supressão das grandes desigualdades: sociais, do interior e do litoral, do Norte e do Sul. Depois percebemos que a entrada na CEE/União Europeia, com benefícios inegáveis, não trouxera desenvolvimento integrado nem mais justiça social. Mas esses já são outros tempos.

6.Peço-lhe uma reflexão sobre o modo como evoluiu a memória deste período de transição política (ditadura para a democracia) nos últimos anos.
R: Habituámo-nos demasiado depressa a um modo democrático de vida que, com o tempo, perdeu um pouco do seu sentido profundo e se foi tornando mais formal. Como se tudo estivesse adquirido. Ora, a nossa sociedade era muito arcaica e conservadora. A democracia é uma aprendizagem que não foi totalmente conseguida. Enriquecemos (apesar da pobreza de muitos ainda), passámos a consumir como os europeus, mas não evoluímos o suficiente do ponto de vista cultural. De modo que, quando vieram as primeiras dificuldades e as novas gerações (que não conheceram o regime anterior chegaram à vida adulta) foi difícil aceitar que o processo de mudança é muito difícil e longo, que se pode sempre recuar em tempos de crise e que, portanto, o que tínhamos conseguido era apenas um patamar de outros que era preciso subir para alcançar melhores resultados e mais satisfação. Passou a culpar-se a democracia pelos fracassos (económicos, políticos), quando, na verdade, quem falhou fomos nós todos, coletivamente. Era (é) preciso continuar a aperfeiçoar o nosso modo de vida coletivo. E isso é trabalho de todos, e não apenas das elites.

7.Que avaliação faz da democracia na atualidade?
R: A democracia vive uma profunda crise, como regime que vive da qualidade dos cidadãos, da qualidade dos partidos políticos e das instituições que temos. Como em muitos sítios do mundo, as democracias foram capturadas por interesses económicos e financeiros que, através de processos sofisticados, têm pervertido o mérito da representação popular, do debate público e das decisões contratualizadas. São poderes ocultos que colocam pedras-chave nos órgãos de decisão política, que «compram» e corrompem os decisores políticos e que se impõem aos cidadãos sem que tenham sido escolhidos para tal. Há uma crise de representação, há uma crise dos partidos e há uma descrença generalizada dos cidadãos que se sentem impotentes para inverter a situação criada. Em muitos países, através do processo democrático, têm sido eleitos inimigos confessos da democracia e isso é aflitivo porque se assemelha muito ao que aconteceu há 100 anos: os europeus desse tempo também elegeram Hitler sem saberem que ele iria provocar a Guerra e o Holocausto. As democracias capturadas por demagogos e populistas são mais perigosas que as ditaduras tout court: simulam mais facilmente e impõem mais facilmente soluções que em ditadura seriam simplesmente consideradas ditatoriais.

8.É diretor do Museu do Aljube. O Museu do Aljube é dedicado à memória do combate à ditadura e à resistência em prol da liberdade e da democracia. Explique o motivo deste museu pretender "preencher uma lacuna no tecido museológico português, projetando a valorização dessa memória na construção de uma cidadania responsável e assumindo a luta contra a amnésia desculpabilizante e, quantas vezes, cúmplice da ditadura que enfrentámos entre 1926 e 1974."
R:
Se em alguma coisa o regime ditatorial salazarista foi bom foi na farsa que montou de uma democracia que anunciava como orgânica: promoveu eleições, dividiu os poderes, mas na verdade subverteu todo o processo de representação: o regime era uma diarquia em que o Chefe do Estado (apoiado por militares) escolhia (e nunca demitiria) o chefe do Governo e em que o chefe do Governo garantia a «eleição» plebiscitária de um Presidente da República que não era verdadeiramente escolhido a não ser por ele. Esta farsa durou 50 anos: os primeiros 16, com o suporte de uma força militar que manteve o poder através de uma guerra civil intermitente; os segundos 30, através do mesmo processo, mais sofisticado, e com o apoio das democracias ocidentais que viam na geoestratégia atlântica um pilar fundamental da Guerra Fria em favor do Ocidente.
Por isso, o regime criou em torno de si um «consenso» falso, suportado pela opressão, pelo medo e pela repressão sobre os mais intransigentes. Milhões de portugueses foram impedidos de ter as suas vidas normais, milhões de notícias foram censuradas, o medo tornou-se a «normalidade».
Com o Museu do Aljube queremos dar a conhecer a todos os portugueses o que aconteceu (mesmo aos que não se aperceberam), e principalmente o que aconteceu ao país: uma dúzia de famílias prosperaram com a acumulação de poder e de riqueza, mas o país empobreceu em décadas; alguns (poucos) decidiram uma guerra em África, impondo aos povos colonizados uma vida de miséria e aos jovens portugueses uma interrupção das suas vidas, quando não a sua morte.
Com o Museu do Aljube queremos, pelo conhecimento da realidade, desenvolver em todos, jovens e adultos, uma inteligência histórica que impulsione um compromisso individual e coletivo com a verdade e com a cidadania ativa, na senda de uma sociedade e de uma cultura respeitadora dos direitos humanos e universais.


Entrevista realizada por: Ana Matilde Reis
Coordenação/Tutoria: Professora Ana Sofia Pinto