Maria Fernanda Fonseca Pinto

Maria Fernanda Fonseca Pinto tem 61 anos. Nasceu em Barrô, concelho de Resende, distrito de Viseu. Foi Auxiliar de Ação Médica no Hospital Egas Moniz. Encontra-se aposentada.


1. Quais são as suas recordações mais marcantes sobre o regime do Estado Novo?
R: Recordo-me da pobreza, miséria e fome. Para além de mim os meus pais tiveram mais sete filhos. Os meus pais trabalhavam no campo. Era um trabalho duro. Lembro-me de, por vezes, eu e os meus irmãos irmos com os meus pais para o campo. Quando não estavam a ver, como a fome era muita, comíamos os frutos das árvores ainda verdes. Tínhamos ordens, por parte dos meus pais, para não comermos nada do que se encontrava nos terrenos agrícolas por eles cultivados. Temiam que alguém visse e fosse contar aos patrões.
Recordo-me de andar descalça. Não tinha sapatos. Tinha pouca roupa. A minha mãe fazia roupa para os filhos com tecidos velhos.
Recordo-me também da sensação constante de fome e de não termos muitas vezes nada para comer. Uma sardinha na minha casa dava para três pessoas.
Não havia brinquedos. Cresci sem eles. Brincava com pedras, flores e com espigas de milho. Imaginava que as espigas de milho eram cabelos de bonecas. Neste tempo, os irmãos mais velhos cuidavam dos mais novos. Na minha casa era assim.
Tenho também memórias da escola primária. A minha professora batia muito nos alunos. Era autoritária e violenta. Batia de forma agressiva. Utilizava para bater nos alunos uma régua grossa ou uma cana. Lembro-me de rezarmos na escola.
Houve um episódio que me marcou e que nunca esqueci. A minha irmã Rosa andava na mesma turma que eu. Estava a faltar à escola para cuidar dos nossos irmãos mais novos. Certo dia, a professora ameaçou-me dizendo-me que se a minha irmã Rosa continuasse a faltar à escola que me iria bater. E assim foi... A Rosa faltou, novamente, à escola e a minha professora cumpriu a ameaça... Bateu-me, violentamente, com a régua nas costas e braços até o sangue escorrer. Tenho também memórias dos manuais escolares. Neles estudávamos os rios, a História de Portugal... A mulher era apresentada como mãe e dona de casa e o pai como o chefe de família que trabalhava no campo. Ir à escola para mim era um suplício. Tinha medo.
Na minha casa não se falava de política. Não se falava do Estado Novo, nem do Salazar, nem do Marcelo Caetano. 

2. Onde é que se encontrava no dia 25 de Abril de 1974? Quais são as suas memórias sobre esta revolução?
R: Quando ocorreu a revolução eu tinha 16 anos. Estava a "servir" numa casa no Porto. As minhas tarefas eram limpar a casa dos meus patrões e cozinhar. Comecei a "servir", no Porto, com 12 anos. Era uma criança. Mas tenho uma irmã que foi "servir" ainda mais nova do que eu. Foi aos 10 anos. Recordo-me de ter saudades da minha família e de à noite chorar muito. Tinha vómitos e diarreia. São tempos que recordo com mágoa e profunda tristeza. Voltando à questão: estava no Porto. Ouvi falar que estava a ocorrer uma revolução para acabar com o regime. Não percebi bem o que estava a acontecer.

3. Que impacto teve esta revolução na sua vida pessoal e/ou familiar?
R: A revolução não trouxe praticamente mudanças na minha vida. Uns meses após este acontecimento vim "servir" para Lisboa. A mudança terá sido no ordenado que aumentou. Ganhava mais em Lisboa do que no Porto. Mas continuava a ser um ordenado baixo. Tive períodos, já casada, no pós 25 de Abril, em que passei fome. No pós 25 de Abril, muitas pessoas continuaram a ter uma vida de miséria.

4. Como avalia o período que se seguiu à Revolução dos Cravos (como descreve a transição política da ditadura para a democracia, quais são as suas memórias sobre este período, foi um período que o marcou a nível pessoal e/ou familiar- justifique)?
R: Neste período ouvia-se falar de governos provisórios, nacionalizações e da reforma agrária. Aos domingos era o meu dia de folga. Costumava passear, neste dia da semana, por Lisboa, de mão dada, com um primo. Assistimos a "ajuntamentos" de pessoas, julgo que se tratavam de "comícios", onde se ouvia: Viva a liberdade e o 25 de Abril! A meu ver, este período, apesar de agitado, foi importante para se alcançar a liberdade, para termos a democracia implantada em Portugal.

5. Peço-lhe uma reflexão sobre o modo como evoluiu a memória deste período de transição política (ditadura para a democracia) nos últimos anos.
R: A memória do 25 de Abril está, a meu ver, viva na mente das pessoas mais velhas. Os mais novos desconhecem o que foi o 25 de Abril ou pouco sabem sobre esta data histórica. É preciso investir nesta memória junto das crianças e jovens do nosso país. São eles o futuro do amanhã.

6. Que avaliação faz da democracia na atualidade?
R: Temos um Portugal melhor comparativamente com o Portugal da época do Estado Novo. Mas falta tanta coisa: melhorias na saúde, justiça, educação... Continuam a existir muitas desigualdades sociais...


Entrevista realizada por Ana Matilde Reis
Coordenação/ Tutoria: Professora Ana Sofia Pinto